quando deixo o tempo passar
a espera senta do meu lado
toma minhas mãos
com calma
me ensina a restar
a despeito de tudo o que passa
correndo com o vento
e minha vontade quer seguir adiante
ainda assim pouso
os olhos no silêncio
me acrescento à escuridão
anoiteço
para nascer melhor
depois da espera
em outro tempo

pietà


piedade para os meus olhos
senhor
eles querem ter onde pousar
piedade das minhas mãos
cansadas da luta diária
piedade dos meus pés
descalços
sobre toda terra
piedade do que penso
o que penso é maior
que sei
piedade do que sinto
o que sinto é menos
que vivi
piedade do que vivo
pois vivo o que sou
e sou na ampulheta
o grão de areia
que resta
e escorre
sem
piedade


a maturidade me pesa
sobre os olhos
e sob os dedos
correm essas palavras
acidas
a maturidade me corta
sangra a ferida
fere a carne suspeita
e suspira
a maturidade me alcança
feito cegueira
desbrava meu mundo
desespero profundo
para não saber
o que vem adiante
a maturidade me segue
me deseja me almeja
me suga
a maturidade me provoca
me compele
me fecha as portas
me tranca do lado de fora
me deixa hóspede
onde sou anfitriã
me faz assassina bandida
cortesã
a maturidade me paga dobrado
pra ver o mundo do jeito dela
quadrado

retornável


tem gente que se acomoda
com sua vida de plástico
sua rotina de plástico
seu amor de plástico
tem gente que até chora
lágrimas de plástico
tem gente que demora
pra entender
a falta da verdade
em algumas escolhas
tem gente que critica
mas vive dentro de uma bolha
tem gente que ora
chora ora ama
ora implora pra voltar
tem gente que ora
grita ora ri
ora consente e cala
a dor que vibra no peito
e ecoa num silêncio suspeito
tem gente que finge a vida
e tem gente que finge
tem gente que foge

boca


a boca que beija
é a mesma que despede
é a mesma que ri
é a mesma que escarnece
e escancara silencio profundo
a boca que beija
também mente e promete
planos de carnaval
fantasias máscaras
o que não diria
essa boca
de tão banal?
não são mais despedidas
nem risos
nem ironias
a boca que beija
também apodrece palavras
também fere e mata
açoita o corpo sem pena
sem pensar no negrume
que espalha
a boca que beija
me beija e me desarma
e me desama
em frente ao espelho


a mão que cultivava a terra
hoje
de unhas limpas
sem calos ou arranhões
hoje
cultiva sonhos
mesmo que eles apodreçam
e persiste
desenha com tintas e palavras
mesmo que se apaguem
ou fiquem turvos

o que importa
não é sobrar ou restar
é o tempo
o tempo é o que importa
ano após ano
só nos importa o tempo
o tempo de amar

entreaberta


te mostrei o mundo
pelos meus olhos
te mostrei o interior
da minha morada
muito além do quarto
e sala
viste o quintal
e minha rede atada
esperando sonhos
te mostrei o rio
que banha minha aldeia
cardumes e desejos
te mostrei as músicas
trilhas sonoras
dos meus silêncios
te mostrei receitas
poções cheiros
alquimias
te fiz um poema
regado a vinho e licor
te fiz perguntas
te mostrei o início
mas não fui capaz
de perceber
pelas respostas desertas
a porta pela qual saias
entreaberta

floresta

queria te ver chorar
as minhas lágrimas póstumas
flores que enfeitam
altares e lápides
vão me lembrar esse dia
queria ver tua agonia

queria te infligir dor
te beijar os lábios
furiosamente
com rancor
até verter sangue
queria ver teu corpo
rastejar
enquanto te maltrato
inclemente

queria te ouvir falar
sobre arrependimentos
ainda que tarde
ainda que no meu peito
a tal chama que arde
seja centelha
perigosa fagulha de incendiar
a floresta confusa
dos meus sentimentos


trago os olhos cegos
para o que me cerca
trago o desprezo
para o desconsolo
trago a calmaria
para o mar revolto
trago a circunstância
para o enredo
olho de soslaio
pro colo que oferece
aconchego
enxergo no futuro
o desenlace
mesmo a revelia
de outro desfecho
turvo o mar
em sal e sonhos
faço coro com
a ausência
ouso restar
sem abandono