receita

ingredientes
um pedaço de mim
uma metade de você

modo de preparo
me derramo na tua vida
sem dó de ser doce
sem reservar
e sem passar pela peneira

pego todas as tuas eiras
e beiras
misturo com as minhas
pego todas as maneiras
de ser feliz o bastante
misturo com a vontade de ti
constante

e cuido pra que nem o tempo
nem o vento
levem migalha ou pedaço
nem tornem frios
o que hoje fazemos ávido

sem prever o fim
provo da parte de mim
que se sabe tua
não acrescento nada: o corpo já sabe onde fica
sua morada

na inteireza do nosso amor
hoje
trago duas partes
e me faço
meio sem medida
sem a tua metade


quando sobram coisas
e falta vontade
que ainda no peito bate
e dói
eu digo: mais tarde
e tarde em fazer
e tarde em chorar
e tarde o amor veio dizer
não dá.

corpo adentro


experimento
um a um
todos os sentimentos
o que não conheço
invento

corpo adentro
enfrento os maiores dilúvios
decido se e quando
me iludo

dou com a cara
no muro
dou a cara a tapa
pro mundo

e mudo a festa
a fantasia o carnaval
mudo o amor de lugar
a casa a mesa posta

o que resta
não importa

gelo


se digo que não ligo
uma parte de mim esmorece
e não consigo mais
(não contigo)
e perco o gosto do teu gosto
e teu gesto
tato

pois o que não faço
com vontade
e todo ímpeto exagerado
do que acredito verdade
não motiva e nem anima
engasgo

a frieza e indiferença
de mim não fazem parte
uma e outra
aqueço no rol dos apelos
descarto
jazigo de maus presságios

quando teu corpo
se contenta com o meu
morno
não faço alarde
desfaço o querer dos olhos
pela metade

se é pra ser gelo
ou tranquilo
sei o que de fato quero:
nem isto nem aquilo


é preciso de um tempo
pra discernir com clareza
a real natureza
do sentimento

a agrura ou alegria
a felicidade ou tormento
do que se vive
varia

a dor da incerteza
o ardor do tesão
a espera:
talheres
postos sobre a mesa
a noite
fria sobre o colchão

de tudo e para tudo
se pede ao tempo:
-tempo
sobre ti recai a decisão

se amadurece
e espera colher
ou se maduro
cai
e apodrece
no chão

a hora mais bonita


quando teu abraço
e teu calor
do meu corpo fazem morada
a hora mais bonita do dia:
tua chegada

quando minhas mãos
inscrevem caminhos
no teu corpo:
mapa

quando tua cantiga
voz
sussurra ao pé do ouvido
a hora mais bonita do dia:
eu em você
abrigo

andarilho


meu corpo vadio
sem dono
sem sono
ruma pra destino
(in)certo

teu corpo
meu dono
resvala o sono
desvia a razão que paira
decerto

teu corpo
meu corpo
insólitos andarilhos
um do outro

voz


a voz emudece palavras
a voz
afobada
tropeça nas sílabas
de uma vida estanque
a voz estanca
abafada

a voz não é ação
a voz projeta promete
critica jura
a voz perjura
em vão

a voz envelhece
a voz fica rouca e embargada
a voz esta noite
seca
rouca
embriagada

voz que é voz
nem muda
se cala

calor


Me deito
Lado a lado
Com teu peito arfante
Lábios e línguas ávidos
Caminho rumo prumo
Proa diletante

Me faço lua
Cheia
Pra inundar a escuridão do quarto
E dispo
Peça por peça
As artimanhas e os percalços
Pra fazer minguar o desejo

Depois do cio
Calor e cansaço

história


então
nosso amor se fez sob medida
no meio de tantas vindas
e idas

o que era só meu
o que era só teu
a pele
os pelos
os teus e os meus apelos
tudo se fez nosso
o corpo
os corpos

(debaixo desse tempo que passa:
as horas os dias
a cantiga do teu olhar
me abraça)



como fio que desenrola do novelo
perdi as contas
de quantas vezes
embaracei meus dedos
nos teus pelos

hoje errante
descrente
ignoro as súplicas
sussurradas no teu nome
ou em nome de qualquer deus
sigo ligado a ti
sigo até

teu


muro


perdi o fôlego
a voz e a vez
tateei no escuro
sem conseguir enxergar
me entreguei a uma languidez
apenas externa
mas não valeu a pena

a exata ternura que procuro
caminha sobre os cacos
do muro
descalça

pele


a pele calejada
filtro perene de emoções
a vista turva
a lágrima barata
vadia
escorrendo aos turbilhões

um não saber
o meio termo
um passo em falso
mãos tateando
a esmo

olhos como barcos
à deriva
no espelho preso
sono
ópio para a dor
reflexo da imagem
cativa

protesto



no meio de tantos protestos
o coração
o peito nu
o corpo nu

no meio de tantos protestos
o corpo pede por uma rendição
o corpo pede pra perder a luta
que emana da vontade de outro corpo
o corpo quer perder a guerra
quer paz
e quer ter razão

o corpo não quer ser feliz com a mentira
doce sussurro no pé do ouvido
condição da batalha
já quase vencida

o corpo só quer
gozar de pé no quarto na cama
rés do chão

o corpo que lançou um grito no meio da passeata
galgou o espaço
se fez cansaço
se transformou em suspiro
ansiou o gemido
no meio da noite

o corpo acolheu no peito a cabeça amada
fez do cobertor sua bandeira
e fez amor.



a noite me pesa sobre os olhos
a noite se encerra sobre meu coração
a noite não silencia o sibilar
da serpente traiçoeira
a noite traz o veneno
a noite aguça meus sentidos vitais
quando eles deveriam dormir
a noite me constrange
e me empurra para o canto da parede
a noite faz raiar meus medos

a noite sou eu

a água do rio me tornou doce
firme nas ideias
pés – raízes plantadas no chão

a água me empurra e me dissolve
assim como a água
sou toda líquida
e trago em mim cardumes
de pensamentos inacessíveis

mas um terço do que sou
tem o sabor do sal
e as profundezas
do que não vejo
nem compreendo
pertencem a uma parte de mim
assim
abissal


resolvi sair detrás dos passarinhos
e das bonecas que sangram
mas não deixei de assoviar a melodia triste
nem deixei de sangrar
aqui por dentro

resolvi mostrar estes olhos
e um pouco do que deixei pra trás
resolvi não contar mais
histórias de ninar
histórias do acaso cego
em que me deixei encontrar

agora aqui está minha face
tripudiada por vontade própria
mas não com pouco sofrer
aqui está minha face
olhos cegos ventania
um passo em falso
no abismo do querer


algumas coisas fazem diferença
e outras diferença nenhuma
duas línguas que se roçam
a pele cor de lua

faz todo o sentido
numa tarde quente
a presa
(sem pressa)
o gemido

monstro


sua palavra me feriu
e sua não-palavra também
ver tua felicidade
fingir que tudo continua
essa tua ignorância de mim
e atitudes tão banais
cada máscara
ressoava vertigem de algo mais

não te soube compreender
deformei minha face
fazendo perguntas sem respostas
galgando muros intransponíveis
até virar o monstro
hipocrisia da falsa expiação
o sofrimento eterno
para o gelo em que se transformou
a lava do vulcão

café


meu café é regado a palavras
nem sempre doces
nem sempre quentes e fortes
mas vivas e sedentas
meu café te convida para dançar
no palco com luzes apagadas
da minha consciência
meu café tira o sono
e turva a placidez da memória
desfecho do roteiro noturno
silenciosa trilha sonora
que vaga a ermo
pela poesia deserta
por esta viela
veia que singra e sangra
aberta

mesmo piscando neon
as garantias que recebo
não me seduzem
nem convencem
só mascaram uma alma lavada
de contratempos

as propagandas não me sobem à cabeça
nem os planos
nem as rotas de fuga
a minha busca é cega
na noite densa e escura
o meu querer ofensivo
se queda enevoado demente
- doente

mal-criada


quero enfeitar teus cabelos com minhas mãos
e sacudir tua sanidade
com algumas palavras ao pé do ouvido
quero arranhar tuas costas
com força
só pelo prazer de ouvir teu gemido
quero te fazer querer
quero te fazer não pensar
quero usar todas as máscaras
pra enfeitar as partes de mim
que você não conhece
e escrever poemas no teu dorso

pensando bem
só quero isso
e em troca fica com o meu ar blasè
pra tua cara de bom moço

raro


é triste não ter histórias pra contar
e ter vivido de tudo um quase
ultimamente
venho me sentindo meio estranha
mas não gosto
não quero
e tomo banhos de chuva
continuamente
paro no meio de tantos sons
cores pessoas e sorrisos
sem deleite
a verdade oscila
e eu imóvel só quero fechar os olhos
pro resto de luz que sacaneia
meu sono
tão raro


em algum lugar aqui dentro
há uma menina que não cresceu
e vive doendo

em algum lugar aqui dentro
sobrevive escondida
atrás de tons pasteis e caramelo
esperando pela despedida
de tudo o que poderia ter sido
e não foi

em algum lugar aqui dentro
há confetes e serpentinas
há um baile sem máscaras
há a promessa da fantasia
há a oculta lágrima de cor carmim

em algum lugar aqui dentro
ainda há a promessa da bailarina
que vivia na ponta dos dedos
e agora na ponta do lápis
escreve a esmo
tentando desvendar o segredo
do mundo que inventou
para si

encruzilhada


te fiz poemas
sem pressa de dizer adeus
mas sabendo que esse dia iria chegar
derramei lágrimas antes da chuva
lavar a tristeza da varanda

coloquei uma roupa nova
me fiz bonita
e saí sem rumo
até que a encruzilhada
exigiu uma despedida

olhei o caminho
tortuosa estrada
entre as montanhas
decidi voltar por onde vinha

sem pressa
sem passos largos
sem a pose altiva e decidida
busquei o caminho de casa
o ponto de início
de todas as partidas


não quero apagar todas as nossas conversas
nem riscar do calendário
o dia que não te encontrei
não quero saber de ti
nem o bem que você me fez

não quero lembrar do teu cheiro ou gosto
que não senti
não quero lembrar
de como não abandonei
meu corpo sobre o teu corpo
languidamente

não quero saber a insegurança
dos teus sonhos fugidios
nem sobreviver
na masmorra de um consolo
intragável
mas vejo e sinto palpável
as portas da tua fuga se abrindo
iminentes

permaneço atenta
e tento gravar no papel a história
daquilo que por medo
não deixamos fazer parte
da memória

de repente
minhas palavras te cansaram
aquela lenta tortura chinesa
me vertia prazer
pela retina

de repente
percebi o desprazer
que te movia
inadvertidamente para longe

de repente
me vi voltando os passos dados
recolhendo cacos
rasgando papeis
sorvendo bebidas imaginarias
em garrafas vazias

de repente vi que
não era eu ou você
o que se perdia na madrugada
percebi que minha presença
fazia parte da tua jornada

percebi minha sina e tua sorte
o tempo que toma conta
do início da vida até a morte
percebi meu devaneio
e teu pranto

encostei meus lábios no seu ouvido
sim, eu canto

sem destinatário



não soube dizer pra ti
as coisas no dia que aconteceram
não soube mais de ti do que de mim
e esse foi o grande erro
tuas histórias se confundiram
com as lágrimas que derramei
a tempo de ver o tempo passar
conselhos na frente do espelho
e outros tantos motivos de não se falar
os espaços necessários entre a gente
ao contrário de afastar
estreitaram com cada conversa vadia
confessas em mesa de bar
ou crimes que nunca serão levados a cabo

de norte a sul as palavras andam
com destino certo:
no meu coração há um abrigo
para um querer assim, mendigo
de alma sedento e colo para descansar

com carinho imenso para Mirella

borrado


este romance me rendeu
alguns poemas e outras dores de cabeça
durante a madrugada
um pouco de alegria
(mas só o necessário pra saber como é)

este romance me rendeu
mais perguntas que respostas
música e vontade
este romance me mostrou
um pouco do amor dizendo: tarde

este romance de mentira
escapou entre meus dedos
ainda tentei prendê-lo segurando
com os olhos fechados
mas a chuva borrou algumas palavras

o ‘eu gosto de você’
virou ‘eu não gosto tanto assim’
a confissão virou embaraço e ausência
o que era virtual virou consciência

meus olhos turvados reviraram a memória
bordada em pedaços de tecido recortado
o álcool acusou meus olhos
embaçados na noite fria
terem lido pedaço teu
que não existia


hoje provei do seu corpo
mais uma vez
sem pressa lasciva
entendi todos os milímetros
de que é feito

na palma da mão
senti novamente
entre os dedos
teus olhos meus desejos

passeei a língua
sobre teus apelos
sorvi o doce e o amargo
te quis de novo

teu nada completa meu vazio
nesta noite de frio
você me serve

protesto contra essas mãos
que contra minha vontade
escrevem
protesto contra meus pensamentos
que contra a minha vontade
materializam o que sinto
protesto contra meus sentidos
eles não me deixam ser outra
que não eu

protesto contra meus olhos
que enxergam quando só
quero dormir
protesto contra essa música latente
protesto contra a dor silente
certa constante
protesto contra a aridez que me faz deserta
protesto contra o cansaço que me toma
depois de uma noite mal dormida

protesto sem voz
sem a fúria característica dos motins
sem rebeldia sem público sem praça
sem ter nada para provar
protesto sem amor

com a alma crua dorida
com a calmaria que ameaça tempestade
protesto com a lágrima quente
na face fria
avalanche de tudo o que
não podia não queria não devia
mas fiz sem arrepender

protesto sem querer


tudo o que preciso
é de mais um copo
dessa bebida e jazz
baby
traga o jazz e seu corpo
também

tudo o que eu preciso
é de um canto escuro
pra sentar e ouvir de longe
a voz triste e o piano
ali minha alma jaz

não quero amor nem sede
quero jazz sexo
e paz

novamente


hoje um fantasma bateu
na minha porta
contando algumas juras
e outras respostas
me falando de amores vividos
e pedaços de sonhos
partidos sem dó nem piedade

hoje abri a porta novamente
para o abraço do dia certo
e segredos sussurrados
ao pé do ouvido
o olhar de soslaio
e um convite pré-combinado

hoje abri a porta e me vi
de repente
envolvida em braços decadentes
nem amar nem mais mar
não sinto mais nada por você
nem quero

me deixe sair
quero ver o luar

prosa


menino prosa
que bossa comigo
e proseia também
passeia na beira
de tantos momentos
sem nunca se entregar
concordando em tudo
com um ‘amém’
qualquer
me diz
bem ou mal
me quer?

insegura


no fim do dia
quando a lucidez assomar aos
detalhes da despedida
lentamente a sobriedade vai
tomar conta e me dizer:
não é você
cada rima cisma em quedar-se
insegura
meu querer não tem
cura

seja insanidade o que
no meu coração causa alarde
digo repito o que sinto
a pele rota o batom vermelho
na frente do espelho

véspera


algumas tristezas não devem ser divididas
a flor deve:
suas pétalas devem ser rasgadas
e entregues ao vento em oferenda
sua raiz deve se espalhar pela terra
seu único alimento deve ser a chuva

a flor que espera do lado de fora
guarda no ventre histórias
aguarda que o vento a leve
do lado mais distante do hemisfério
a flor aguarda ainda
no fundo do pote de barro em que reside
mistério e vontade
a vontade de dizer: amar

a flor admite não poder seguir só
a flor se põe no lugar da tristeza
sobre a mesa


acostumada que estava
à sua presença invisível
senti parte de mim esmaecer
escorrendo líquida na parede
recém pintada
borrão

inundando meu corpo
transformando em rio
sem conseguir resolver
o misterioso caso da rima
sem solução

a palavra fica solta
como metades
que não se encontram
esperando um par
como olhos marejados
que só sabem inundar

acostumada que estava
com as verdades
inventadas à meia noite
dormia dias a fio
esperando encontrar
a ponta da rima perdida
no meu não saber amar


distorcida
a palavra vaga sem saber
significar

na medida
as dores vem e vão
vem em vão

a palavra está dita
resta saber
acreditar


enxergo seu corpo por partes
vejo nos aclives e declives
possibilidades
cada curva: destino
desatino minhas mãos
desenho e escrevo estrada
com os cílios e a ponta
dos
de
dos
meço teus cabelos
meus medos

(a noite me esconde)

algumas coisas não devem ser ditas
nem pensadas na calada
da noite
a voz rouca emudecida

algumas coisas não devem ser ditas
mesmo com a mordaça caída
mãos imóveis sobre a mesa
a vontade contida mal-disfarçada

mesmo a voz rouca
decide não haver mais febre
não quer enxergar no breu
com olhos que não os seus

mesmo o querer ausente
e a vontade
antes rente ao corpo
mirando outro porto

decide plantar um caminho
nas águas: cais
náufrago a esmo
vento vil açoitando a pele
o querer banido no olhar mordaz


meu jeito de fazer silêncio
é dizer coisas assim
um tanto pela metade
um tanto com o olhar
outro tanto me sai pelos dedos
mesmo sem querer

às vezes uso o silêncio pra sussurrar
canto palavras novas
invento e me desconheço

às vezes só amanheço

feito de barro


o homem é feito de barro
e hábito
o homem acostuma
falar sentir fazer olhar
e diz que ama

a necessidade preenche
o vazio do querer do homem
a costela de cerâmica
está oca mas não cabe
(ele não sabe)
o seu sentimento

o hábito faz o homem
homem que escreve
homem que lê
o homem de barro desmancha
na água
(ele não sabe)
do meu sentimento


triste é a sina
de quem chora
não ter o que não sabe
triste é a sina
de quem chora
ter o que não sabe
triste é a sina que
demora
e o momento urge
triste é a sina que
com o tempo melhora
e passa últil
conformidade
triste é a sina que
aparenta paisagem
e é apenas um quadro
na parede sem
janela

consolo



vivo sozinho
rodeado de costumes
respirando o insumo
do que me foi projetado
as vezes sinto mais ou menos
dores
mas calo o cristal
sobre o vidro amordaçado
segue repleta minha vida
de saberes e
dissabores
procurando no fundo
da alma consolo inusitado
até que a fortuna
a nau do que desejo
me navegue por mares
à procura do lampejo
que anda disfarçado


as palavras me salvam
de algo maior
me salvam da morte
me salvam da vida
da minha vida
salvam do deserto
em que me encontro
me salvam do sal
e deixam na boca um gosto de sede
um gosto de oásis
as palavras esta manhã
me acordaram
e fecharam meus olhos
não
eles não são necessários

olhos


grandes olhos que me perseguem
por que iluminam minha noite assim
despertam meus sentidos
pintam de púrpura a noite escura
enxergando o mundo
tom carmim
olhos que convencem
para o caos de uma vida arrebatada
destilam angústia e desistência
olhos que me despertam
de uma alegria falível a certeza
sei que zombam de mim
dia dia noite e dia
sei que dentro da concha
a pérola reside na areia
-no momento do gozo eterno
não são os grandes olhos
mas a distância
que espreita

o fogo passou por aqui
devorando grilhões e correntes
agitou a fera
acordou a serpente
queimou as certezas
e o vício da bonança
arrastado pelo vento
surpreendeu o indômito
lavrado resistente
o fogo atingiu em cheio
as certezas plantadas
em lua crescente
seguiu no rastro
do olhar conciso
do ouvido que anseia
a palavra reprimida
o fogo finalmente cedeu
virou candeia indecisa
sem saber ao certo
se a água do rio à espreita
o apaga ou abriga
tua conversa instiga meu verso
ligeiro
e quando a palavra sai
procuro atrair teu olhar
decerto um tanto fugaz
com uma certa rima
tua pirraça instiga meu verso
sorrateiro
na cadência da voz
que desafina
minha audácia junta palavras
refaz dos cacos a história
desmente o rubor na face traída
inventa alegrias alcoólicas
desmedidas
brinca de bandido detetive assassino sanguinário
até o horário que o sono assola
então brinda à consciência
e à memória
o disfarce blasè da imagem
distorcida

ferida


cada barulho anunciava o fim
iminente
e mesmo os silêncios
que se faziam absurdos
explodiam em rojões
do lado de dentro

cada cano quebrado
cada queda
amortecia a altura
de se sentir deitado
e mesmo a chuva
não escondia o sal
açoitando líquido
a face

por trás do tumor
nem sorte nem morte
a rudeza do espinho
sobre o infinito chão
a dor a chaga o ácido
um corpo vagando
cego
pelo caminho

dois goles de chá
meia dúzia de palavras
e talvez alguns passos
incautos
sobre a poça rasa
espelho feito de lama
algumas outras mentiras
contadas sobre a cama
o chá sobre a mesa: água
quente que dissolve
a calma e a mágoa
de tez em tez
era uma vez