resolvi sair detrás dos passarinhos
e das bonecas que sangram
mas não deixei de assoviar a melodia triste
nem deixei de sangrar
aqui por dentro

resolvi mostrar estes olhos
e um pouco do que deixei pra trás
resolvi não contar mais
histórias de ninar
histórias do acaso cego
em que me deixei encontrar

agora aqui está minha face
tripudiada por vontade própria
mas não com pouco sofrer
aqui está minha face
olhos cegos ventania
um passo em falso
no abismo do querer


algumas coisas fazem diferença
e outras diferença nenhuma
duas línguas que se roçam
a pele cor de lua

faz todo o sentido
numa tarde quente
a presa
(sem pressa)
o gemido

monstro


sua palavra me feriu
e sua não-palavra também
ver tua felicidade
fingir que tudo continua
essa tua ignorância de mim
e atitudes tão banais
cada máscara
ressoava vertigem de algo mais

não te soube compreender
deformei minha face
fazendo perguntas sem respostas
galgando muros intransponíveis
até virar o monstro
hipocrisia da falsa expiação
o sofrimento eterno
para o gelo em que se transformou
a lava do vulcão

café


meu café é regado a palavras
nem sempre doces
nem sempre quentes e fortes
mas vivas e sedentas
meu café te convida para dançar
no palco com luzes apagadas
da minha consciência
meu café tira o sono
e turva a placidez da memória
desfecho do roteiro noturno
silenciosa trilha sonora
que vaga a ermo
pela poesia deserta
por esta viela
veia que singra e sangra
aberta

mesmo piscando neon
as garantias que recebo
não me seduzem
nem convencem
só mascaram uma alma lavada
de contratempos

as propagandas não me sobem à cabeça
nem os planos
nem as rotas de fuga
a minha busca é cega
na noite densa e escura
o meu querer ofensivo
se queda enevoado demente
- doente

mal-criada


quero enfeitar teus cabelos com minhas mãos
e sacudir tua sanidade
com algumas palavras ao pé do ouvido
quero arranhar tuas costas
com força
só pelo prazer de ouvir teu gemido
quero te fazer querer
quero te fazer não pensar
quero usar todas as máscaras
pra enfeitar as partes de mim
que você não conhece
e escrever poemas no teu dorso

pensando bem
só quero isso
e em troca fica com o meu ar blasè
pra tua cara de bom moço

raro


é triste não ter histórias pra contar
e ter vivido de tudo um quase
ultimamente
venho me sentindo meio estranha
mas não gosto
não quero
e tomo banhos de chuva
continuamente
paro no meio de tantos sons
cores pessoas e sorrisos
sem deleite
a verdade oscila
e eu imóvel só quero fechar os olhos
pro resto de luz que sacaneia
meu sono
tão raro


em algum lugar aqui dentro
há uma menina que não cresceu
e vive doendo

em algum lugar aqui dentro
sobrevive escondida
atrás de tons pasteis e caramelo
esperando pela despedida
de tudo o que poderia ter sido
e não foi

em algum lugar aqui dentro
há confetes e serpentinas
há um baile sem máscaras
há a promessa da fantasia
há a oculta lágrima de cor carmim

em algum lugar aqui dentro
ainda há a promessa da bailarina
que vivia na ponta dos dedos
e agora na ponta do lápis
escreve a esmo
tentando desvendar o segredo
do mundo que inventou
para si

encruzilhada


te fiz poemas
sem pressa de dizer adeus
mas sabendo que esse dia iria chegar
derramei lágrimas antes da chuva
lavar a tristeza da varanda

coloquei uma roupa nova
me fiz bonita
e saí sem rumo
até que a encruzilhada
exigiu uma despedida

olhei o caminho
tortuosa estrada
entre as montanhas
decidi voltar por onde vinha

sem pressa
sem passos largos
sem a pose altiva e decidida
busquei o caminho de casa
o ponto de início
de todas as partidas


não quero apagar todas as nossas conversas
nem riscar do calendário
o dia que não te encontrei
não quero saber de ti
nem o bem que você me fez

não quero lembrar do teu cheiro ou gosto
que não senti
não quero lembrar
de como não abandonei
meu corpo sobre o teu corpo
languidamente

não quero saber a insegurança
dos teus sonhos fugidios
nem sobreviver
na masmorra de um consolo
intragável
mas vejo e sinto palpável
as portas da tua fuga se abrindo
iminentes

permaneço atenta
e tento gravar no papel a história
daquilo que por medo
não deixamos fazer parte
da memória

de repente
minhas palavras te cansaram
aquela lenta tortura chinesa
me vertia prazer
pela retina

de repente
percebi o desprazer
que te movia
inadvertidamente para longe

de repente
me vi voltando os passos dados
recolhendo cacos
rasgando papeis
sorvendo bebidas imaginarias
em garrafas vazias

de repente vi que
não era eu ou você
o que se perdia na madrugada
percebi que minha presença
fazia parte da tua jornada

percebi minha sina e tua sorte
o tempo que toma conta
do início da vida até a morte
percebi meu devaneio
e teu pranto

encostei meus lábios no seu ouvido
sim, eu canto

sem destinatário



não soube dizer pra ti
as coisas no dia que aconteceram
não soube mais de ti do que de mim
e esse foi o grande erro
tuas histórias se confundiram
com as lágrimas que derramei
a tempo de ver o tempo passar
conselhos na frente do espelho
e outros tantos motivos de não se falar
os espaços necessários entre a gente
ao contrário de afastar
estreitaram com cada conversa vadia
confessas em mesa de bar
ou crimes que nunca serão levados a cabo

de norte a sul as palavras andam
com destino certo:
no meu coração há um abrigo
para um querer assim, mendigo
de alma sedento e colo para descansar

com carinho imenso para Mirella

borrado


este romance me rendeu
alguns poemas e outras dores de cabeça
durante a madrugada
um pouco de alegria
(mas só o necessário pra saber como é)

este romance me rendeu
mais perguntas que respostas
música e vontade
este romance me mostrou
um pouco do amor dizendo: tarde

este romance de mentira
escapou entre meus dedos
ainda tentei prendê-lo segurando
com os olhos fechados
mas a chuva borrou algumas palavras

o ‘eu gosto de você’
virou ‘eu não gosto tanto assim’
a confissão virou embaraço e ausência
o que era virtual virou consciência

meus olhos turvados reviraram a memória
bordada em pedaços de tecido recortado
o álcool acusou meus olhos
embaçados na noite fria
terem lido pedaço teu
que não existia


hoje provei do seu corpo
mais uma vez
sem pressa lasciva
entendi todos os milímetros
de que é feito

na palma da mão
senti novamente
entre os dedos
teus olhos meus desejos

passeei a língua
sobre teus apelos
sorvi o doce e o amargo
te quis de novo

teu nada completa meu vazio
nesta noite de frio
você me serve

protesto contra essas mãos
que contra minha vontade
escrevem
protesto contra meus pensamentos
que contra a minha vontade
materializam o que sinto
protesto contra meus sentidos
eles não me deixam ser outra
que não eu

protesto contra meus olhos
que enxergam quando só
quero dormir
protesto contra essa música latente
protesto contra a dor silente
certa constante
protesto contra a aridez que me faz deserta
protesto contra o cansaço que me toma
depois de uma noite mal dormida

protesto sem voz
sem a fúria característica dos motins
sem rebeldia sem público sem praça
sem ter nada para provar
protesto sem amor

com a alma crua dorida
com a calmaria que ameaça tempestade
protesto com a lágrima quente
na face fria
avalanche de tudo o que
não podia não queria não devia
mas fiz sem arrepender

protesto sem querer