porcelana


tenho sentimentos
finos e delicados
feito porcelana chinesa
mas a vontade que vem de dentro
emana com a fúria do vento
alisa a face
acaricia a incerteza
me livra de toda saudade
cartas sobre a mesa
mesmo com a destreza
aprendida
trago na algibeira
a louça fina que sou feita
por mais que a vida
tente me torcer
sem quebrar eu sigo
solto o cabelo
descalço os pés
encaro os espinhos
e as pedras do caminho
sobre a luz que me aquece
forjo aço e derreto a neve
rasgo as cartas
viro a mesa
destino é moeda
que não mostra a face
é cristal roto
o rosto magro
o desenlace

liturgia


hoje vou confessar
meu culto ao teu corpo
vou rezar em latim
ou em línguas estranhas
e destilar um olhar manhoso
sobre a taça
do teu vinho
vou morder a hóstia
e lamber a ponta dos dedos
um a um
sem modéstia
ou retórica
a minha prática apostólica
é seguir teu cheiro
sem rumo
a despeito de todo pecado



o sentir é sagrado

blasè


quero aprender
a ser blasè
não reparar se tu me olhas
não fazer teatro
nem mise-en-scène
e mesmo que pense
que olhei pra ti
minha resposta será
sempre a mesma:
isso foi déjà vu

mea-culpa


desculpe
o padrão não me serve
não apare as arestas
não siga as setas
nem esconda as pistas
se a forma não encaixa
no modelo pretendido
ela só serve
pro lixo
não quero conserto
nem remédio
nem cirurgia plástica
pra cicatriz
que afaga a face
rota
o caminho d’água
no rosto
meu mapa

do nada


naquela noite
você apareceu do nada
abriu seus segredos
sua caixa de pandora
sem me dar conta
permiti
que você enfiasse a língua
e seu verbo
debaixo do meu travesseiro
do nada
sonhei contigo
aspirei dias e noites
inspirei teu perfume
e te amei
daí você falou
precisar partir
secretamente pensei
que você fez do seu nada
o meu também
sem me dar conta
disse amém
de repente
me vi cheia
e saturada do seu grande
e imenso
vazio
agora suma
e não diga obrigado
de nada

viagem

vai que chega o dia
e minha calmaria
se afoga em lágrimas
pode ser no susto
pode ser no absurdo
ou na alma repentina
vou te ver depois do carnaval
sem confete ou serpentina
mesmo que jure as mentiras não cumpridas
o dia da tua partida
será para mim óbito
e tudo o que pensei
vai se cumprir num evento óbvio
tua viagem
meu degredo
-da vertigem que me corrói as entranhas
não conto a ninguém
segredo
o filho que meu ventre
não quer te dar
e por isso
árido
joga fora
expulsa
re-pele
tua pele
pelos
ao menos
talvez sobrem
vestígios encarnados
-minha carne te abomina

Halloween


te amei e te quis
sem pudor
implorei e menti
fiz cena pra receber
teu carinho explícito
joguei búzios
li cartas
percorri os caminhos da mão
dias a fio
exalando essências raras
acendi velas na sexta feira
vesti tua fantasia
era noite de lua
e eu cheia
de armadilhas

lápide


sinto o veneno percorrendo
o caminho das entranhas
vejo o dia claro escurecer
tendo a certeza
de que cada circunstância
mais banal
cada nota desta música frugal
tocou na vitrola
e não foi ouvida por ninguém
não te ouvi
não te vi
não senti teu olhar
teu desdém
cada pincelada de cor neon
é hoje natureza morta
aqui jaz
tua fama de rapaz bem quisto

meu remédio para teu veneno
é me intoxicar de outros
nem fortes
nem amenos
apenas quero de você
menos

*para Josi