Banquete




Naquela noite você chegou

Prometeu banquete de palavras

Gestos, atos, fatos

Naquela noite você chegou

Ofereceu uma mesa farta 


Aos poucos fui notando

Que o desejo era maior

Que a vontade

E era menor 

Que o medo 

E foi retirando

Dedo a dedo

As mãos por sobre as minhas


Quando vi 

Ao amanhecer do dia

Nada restava sobre a mesa:

Somente migalhas 

No chão e

Minhas mãos vazias.


*Arte de Sliplead disponível em https://www.instagram.com/p/Chtt4P0Bzno/?igsh=N3UxNG5uMTFidnF5

Navalha



A navalha cega das tuas palavras

Cortou cirúrgica 

Não deixou arestas


A navalha cega dos teus atos 

Sangrou pungente 

Minha carne

Meus sentimentos

Meus versos


Imagem de David Álvarez disponível em https://www.instagram.com/p/CyvrKv4OXIW/?igsh=Z25xaGw4cXRrYXh4




Não colonize o corpo

Da mulher 

Não toque, não opine

O corpo é dela e vive

Respira

Sente

Move 

Só ela sabe as marcas que carrega


Não colonize a vontade

Da mulher 

Não intimide, não limite 

A mulher quando ousa querer

Já venceu muitas

Barreiras

Ameaças

Fronteiras 

Só ela sabe o custo do seu desejo 


Não colonize a ternura

Da mulher 

Não rotule o carinho, o afago

Não colonize o discurso

Da mulher

Sua fala, sua voz 

Não colonize a presença

Não colonize o sonho 

Não colonize o sexo

Da mulher


Porque tantos territórios ainda 

Permanecem incontestes 

A mulher

Não é um deles










*Tela de “A escrava à venda” de Jimenez Aranda José (1837-1903).


 Eu quero que você se leia 

nessas palavras

Eu quero que você se encontre 

Neste poema

Eu quero que você me leia e

Se veja:

Reflexo de tudo que digo

Eu quero que vc se sinta

Nas linhas

Deste poema

E não se aflija por outros

As palavras são vastas

Mas essas são tuas 

Eu quero e te quero

Imerso no verso

Imenso.



*Colagem de Wolney Fernandes disponível em https://www.instagram.com/p/Cknt2zeOtqe/?igshid=ODhhZWM5NmIwOQ== 


Aquilo que me cabe

A ninguém cabe julgar

Aquilo que me sabe

Ninguém sabe opinar

Qual destino terei

Qual vida terei

Como posso 

Saber

Julgar

Adivinhar

E ainda que me caiba

A decisão sobre nada

Realizar

Ainda assim é justo

Que eu queira

Quem me queira

Viver e 

Amar 



*Detalhe da tela "Mulher Imaginada" de Carolina Burgo disponível em @c.burgo-art

 


Haja calor

Pra tanta sede

Haja calor

Haja vento pra tanta

Rede


Haja luz

(Fiat lux)

Haja luz pra tanto 

Sol

Haja fogo 


Haja tudo que 

Urge

Arda tudo que 

Foge


E queima 



Imagem: A Grande Avó do Universo, de Daiara Tukano, disponível em @daiaratukano

Chamado


Trago um animal cativo 

Preso junto ao peito 

Um animal de meias palavras 

Meios atos meio afeto


Trago uma presa escondida 

Sob os olhos 

Fora da vista 

Ela espreita atenta qualquer

Visita


Trago uma presa afeita a

Silencios

Na calada da noite ela sussurra

Aflita: 


Pode entrar

Ou eu

Entro?



*Detalhe da tela Impermanência, de Carolina Burgo em @c.burgo_art 

Inteira




Tem pedaços de mim

Que se misturam com a noite escura

E viram breu


Tem pedaços de mim 

Escondidos em cada palavra 

Que calei


Tem pedaços de mim 

Espalhados feito cacos de vidro

Perdidos no chão 


Tem pedaços de mim

Dissolvidos pela água que escorre

Len

      Ta

         Men

                 Te


Tem pedaços 

E tem minha alma

Inteira





*Imagem reprodução de tela de Carolina Burgo disponível em @c.burgo_art


Aniversário



Quem celebra a palavra dura 

Fria

Qual lápide na noite escura

Qual verso de rima pobre 

Escrito num papel de remédio sem cura


Quem celebra o fim iminente

Triste

Qual dor navalha na carne latente

Qual ferida aberta 

Mas finge a dor que não sente 


Quem celebra a casa revirada

A vida

Qual roupa desgastada

Qual cama desfeita

E finge o riso sobre os destroços da jornada


Parabéns

pra 

você 




*colagem Ícaro de Wolney Fernandes disponível em @wolneyfernandes 



Viver a vida que me cabe

Completamente

Viver a vida que me basta

Hoje e hoje e hoje 

Viver a vida de mil mulheres em mim

Viver mil sentimentos em mim 

Viver o amor-desamor

Viver a verdade ou a mentira

Viver um ciclo de coragem

Simplesmente

Viver o que outras mulheres viveram

Vivem

Viver e saber que não sou a primeira

Nem a última

Viver o engodo do sossego

Viver a decisão tomada

Viver a saudade nefasta 

Viver sem temer

Viver e temer

E seguir 







Tela: “O sonho de Lorena” de Carol Burgo em @c.burgo_art




Maternidade



A maternidade me atravessou

Inexoravelmente 

Feito navalha cega 

Na carne ardente

Irremediável 


A maternidade me atravessou

Numa fúria lancinante

Não sou mais mulher

Não sou mais amante

Não sou mais nada


A maternidade me atravessou

E ainda estou tentando me encontrar

Nos escombros 

Nas músicas que pensei ter esquecido


A maternidade me atravessou 

Feito lança e me partiu em 

Vários pedaços desconexos 

Espelho fragmentado de lembranças 


A maternidade pariu a mãe e matou 

todas outras mulheres 

 Em mim




Tela “Abrindo Caminhos” de @c.burgo-art 


Morto

 



Sou viúva de um amor ainda vivo

Um amor doente e moribundo 

Um amor que

Ainda latente

Me desabou céus mar e o

Mundo


Sou viúva de um amor vívido

Vivido em dias tensos e duros

Sou viúva 

De intempéries e absurdos

De um amor que outrora bom

Hoje nocivo 


Sou viúva e visto meu manto negro

Teço a mortalha sem desfazer

Os pontos 

E quando acabar não espero 

o encontro 

Com aquele que foi 

Sou viúva e vivo um amor morto





*Tela de Carol Burgo em @c.burgo_art