por vezes
há ideias pairando
feito nuvens
escassas
impalpáveis

por vezes
há ideias frígidas
esqueleto inamovível
corte obtuso da memória
rasgando esta que sou eu
abismo





*imagem de Thomas Dodd

parece que tudo que escrevo
foi dito por alguém
e ressoa
eco de palavras que não falo

o corpo inocente
tenta
mecanicamente
produzir um som
balbucio torpe

não há geometria
não há latim
parcos são os recursos:
memória, tom, dom

não há sentimento
não há emoção
só o peso da mortalha
voz
vazia
pairando no chão





Ilustração de Lisbeth Zwerger
Teu amor etílico
Tem prazo de validade e fim
Teu amor bêbado
Porta de botequim
Não sobrevive dois minutos
Sóbrio
Se desfaz qual sal
Num copo de gim

Existem razões para o luto
Existe o abandonar da  vida o corpo
Existe o sofrer sem dor
Existe o olhar vazio dizendo amor

Existe o homem descarnado
Escorrendo líquido pela vida
Existe o homem de tez altiva   
Sustentando mentira e indecisão
Existe no meio do sim, a negação

Existe a certeza também
De se ter sempre dúvida pela frente
Existe no meio do rio correnteza
Dessas de levar e lavar a alma da gente

Existe este chão.  Água de beber e banhar.
Existe sim,
Mas nunca fui tão ar.


tenho medo de não ser suficiente
e nadar eternamente
atrás dos cardumes
tenho medo do costume
de me perder na corrente
e achar que a vida
só se anda pra frente
frente
frente

quero andar pra trás
dar meia volta
seguir pelos cantos
ou distraída
simplesmente

quero não ter medo
quero vento
quero alento
quero dar voltas
ao redor do céu
e com os pés vagar
o firmamento






Imagem de Catrin Stein

Mormaço


Tem gente que me acha louca
Varrida, pá virada, cara a tapa, cara no chão
Mas tem gente que me tem tesão

Tem gente que me acha triste e manda ser feliz:
vai fazer exercício, dieta, viajar, virar a página e seguir adiante
Mas tem gente que me acha radiante

Tem gente que me acha chata
Estressada, irritada, irritante, cheia de problemas
Mas tem gente que até me faz poema

Tem gente que me acha exagerada
se irrita com meus ataques, xiliques, TPM e tiques
Tem gente que não se importa comigo
Mas tem gente que me faz abrigo

Tem gente que me faz rir, e eu não quero
Tem gente que me faz chorar e eu espero
Mas tem gente que é só ombro, colo, mãos e abraço
Tem gente que é floresta
Eu sou mormaço






Imagem de Benjamin Lacombe

te escrevi alguns poemas
e desenhei palavras no teu corpo
moço
desejei lê-las enquanto dormias
mas contive a vontade e apenas olhei
teu dorso

teu cheiro e ressonar suave
a pele branca prenhe
de desejo
nossa história inconclusa
a caminhar para um rumo
que não vejo

mas não vendo e mesmo assim
sentindo
acendo uma vela para o que almejo
duas mãos dois braços dados uma viagem
um só caminho e nós dois
seguindo






* imagem: quadro de Dali.

vestígios


Catei os vestígios da estrada
Retirei as migalhas do caminho
Sem deixar traço ou palavra
Arranquei todos os espinhos
Cuspi sobre a palavra malfadada
Rasguei a letra não dita
Ocultei o signo digitado
Da mensagem pretendida

Sobre ocultos dizeres
Nem o maior de todos
Os prazeres
Restou na despedida

oriente


e porque hoje estou assim
roendo a saudade pelas beiras
desfazendo o querer
do que o corpo anseia:
peles, mãos, braços
noite de lua cheia
o suor, a estrada sem fim
caminhos, ruas
tortuosa vontade de chegar o dia
e trazer o teu oriente
pra perto de mim

Pra alegrar teu coração
Fiz um guizado
Com bastante tempero
Batata, cenoura e do verde
O cheiro

Cheio de carinho
Me trouxeste ao teu ninho
Para um tambaqui
Assado sem pressa

E eu: a presa
Entre pimentas e tesão
Amor ao pé do fogão

absurdo


absurdo é se conter
nessa subida sem fim
é contar migalhas e dar de um por um
amor tão bonito assim
mas nessa subida toda
o que eu quero é lá em cima ver
uma rede atada
esperando nossa chegada
- vem, meu bem, ficar junto de mim

bodas de palavra


Há que se ter números
Para contar
Três vezes sempre
O resultado é
O tempo de quem sente
Tem gente que
Conta algodão
Papel, linho
E as pedras do caminho
Tem gente que
Conta metal
Prata, diamante
Mas tem gente
Que é só amante
E conta
Palavras

araçá


agosto é a época do araçá
é a época da chuva
da praia escondida pelo rio
mas em julho
meu amor encontrou teu cio

e a nossa vontade
que vinha de tempos
se arrumou em um momento
e nem chuva nem vento
nem sol nem claridade
de novembro

qualquer banalidade
ou a provável saudade
que iriamos sentir
não ousou diminuir
a ternura o chamego
o amor o sossego
que o colo um do outro traz

daí então daremos conta
que não depende de tempo ou rota
aquela vontade sempre vai bater
na minha ou na tua porta
cheirando araçá
trazendo pro meu canto o norte
e levando norte
pra todos os cantos
de lá

espasmo

Ela experimentou
E gozou em bocas mais ácidas
Do que jamais conheceu
Mesmo com o rubro sobre a face
E sobre os lábios
Lividamente
Durante o espasmo
estremeceu
Não contou e nem pode conter
Outras bocas, mais torpes e
menos confusas
Sobre o que nem era seu

o que se arrasta do limbo
embola e engana
confunde seda e linho
corrói a chaga
contorce as entranhas

o que vem do nada
é chaga
tumor que ora chega e mata

o que vem do nada
volta
pro nada de onde partiu
a ferida, veia seca antes rubra
agora anil

letargia


cada resposta cabe num vácuo
a ausência anseia falar
cada resposta é um presságio
do que se quer
ou se tem
para dar

cada resposta oblíqua
vaga a mente
dissipa e dissolve
etílica

cada resposta limpa
é suja
e não surge: some
tira sarro
do medo ou do escarro

fagulha
irmã da letargia e do descaso
ímã da covardia anônima
filha
da puta

cura


Com uma mão arregaço as saias
Com a outra
Puxo teus cabelos
Embriago meus dedos
Cheiro teus apelos

Com um olho te desnudo
Com o outro te descubro
E encubro meu desvelo

Com uma perna te enrosco
E vou chegando perto assim
Me encosto no teu canto
E canto parcas notas enfim

Com a voz embargada
Trago uma saudade
Arrastada
Do dia que você iria querer
Só a mim