dois goles de chá
meia dúzia de palavras
e talvez alguns passos
incautos
sobre a poça rasa
espelho feito de lama
algumas outras mentiras
contadas sobre a cama
o chá sobre a mesa: água
quente que dissolve
a calma e a mágoa
de tez em tez
era uma vez

tenho as linhas que cortam a mão
e seguem pela estrada deserta
tenho a sina de um quase
prestes a tudo
antes mesmo que acabe
agora ou talvez
quem sabe não sei
tenho a faca afiada
e migalhas sobre a mesa
tenho esta dilacerada palavra
rumo cego à empreita
tenho o destino cruzado
abraço falido banido
bandido
tenho o desejo alquebrado
açoitando a consciência
tenho as mãos e as linhas pontilhadas
minha destreza e meia certeza
do caminho inteiro


feito essa chuva
que desaba com o céu
sobre as cabeças
feito esta vontade
de correr
como se o corpo não tivesse limite
assim nasce o desejo
com a chuva e com o corpo alquebrado
estendo a toalha no chão
e te convido a tomar
o primeiro
café

enredo


um pedaço de tecido
dá pano suficiente
pra mangas e vestidos
conto histórias bordadas
com a linha do nosso
segredo
o ponto do crochê
o canto da mandinga
por onde alinhavo a sina
desmancho o nó do
enredo

desprezo


te quis
com um pra sempre agarrado
nos olhos
e continuei olhando
somente
pra ver o que vinha depois
se depois do amanhecer
sobraria só um
ou os dois
te amei com vontade de voltar
com vontade de criança
sem motivo razão circunstância
joguei o orgulho no vento
e me vi sem alento
joguei o pudor
a razão
sem medo
e agora vejo o rosto
no espelho
pronto pra ceder o outro lado
da face
pro teu desprezo


lanço uma dinamite
palavra
sobre teu intransponível desejo
ainda assim
incólume
permaneces no invólucro
casulo
que nunca vai
te fazer
voar

trago no peito
as janelas e as portas
necessárias para fugir de mim
agulhas
linhas
necessárias pra tecer uma rede
e dormir
trago no peito
ânsia e vontade
calmaria e tempestade
trago na ponta dos dedos
pudor e paixão
escrevo friamente
o que pulsa arde vibra
a combinação certa de elementos
pode gerar vida
ou entrar em combustão
trago no peito a chave
solução de quem busca alívio
o mundo dentro de mim
meu refúgio
exílio


não vou dizer
que sinto falta das nossas conversas
e da cumplicidade do nosso olhar
das mentiras que contamos
um ao outro
pra acariciar a existência
do insólito
não quero a lembrança cheia de pudor
dos despudorados que fomos
quero o silêncio
o respeito
quero a remota possibilidade
da frieza
e rezar
para que a distância entre nós aumente
não vou dizer
que não sinto falta
que não sinto tua falta
mas digo que não quero
tua amizade forjada
atrás de portas
semicerradas

e se ninguém não nos pede amor?
e se não há
a possibilidade do amor?
do amanhecer
do querer
do sempre esperar?
e se meus ouvidos
estão surdos para quem me chama?
e se quando não vejo
não é porque não quero
mas porque trago na face
olhos cegos?


fiquei com teu cheiro impregnado na memória
a lembrança de querer mais do que devia
fiquei com teu gosto machucando
a minha existência
pelos restos dos meus dias
ansiei saber tua história
e construir pontes que me levassem
na fonte do teu calor
ansiei as conversas que não tivemos
as noites que não dormimos
ansiei pelo meu jeito
de não te entender
só não soube
que tuas escolhas te levaram
pra longe dos anseios que tive
e fiquei desnuda
com a consciência fatigada
de tanto esperar atenta
na sala
tua chegada



as vezes escuto coisas
que não quero ouvir
vejo coisas
que não quero ver
sinto coisas
que não quero sentir
e me revolto contra a minha natureza
mando a paz e a civilidade
pra fora de casa
as vezes só quero esta
pequenina fagulha de revolta
aqui dentro
as vezes só quero não me ser
e chorar lágrimas incontidas
debaixo do chuveiro
as vezes não quero o termo
só o meio
as vezes consigo pisar no chão
outras vezes meus pensamentos
ficam na ponta dos pés
e me deixam de ponta cabeça
as vezes só quero o “as vezes”
outras vezes o sempre me rodeia
desejo que fique
ele nunca se demora
e digo: fique
mas ele anseia outras paragens
outros dias luas
outras paisagens


os excessos que cometo
são só meus
as mentiras que eu me conto
as ciladas que forjo
pra prender os sentidos
os grandes silêncios
o olhar perdido
a lágrima que turva a vista
demora
da
mente
é minha
a tez crispada em arrepio
a espera que não sei viver
o tempo que não me sabe passar
é todo meu este quintal
quando o que sinto só
faz chorar
é todo meu o amor que não me sabe
que não me sente
e que não sinto
é toda minha a ausência
este modo de não saber o que dizer
e de não saber
é todo meu o medo de me saber
a fundo
de me descobrir no meio do mundo
do meu mundo
e de todos os outros