parece que tudo que escrevo
foi dito por alguém
e ressoa
eco de palavras que não falo
o corpo inocente
tenta
mecanicamente
produzir um som
balbucio torpe
não há geometria
não há latim
parcos são os recursos:
memória, tom, dom
não há sentimento
não há emoção
só o peso da mortalha
voz
vazia
pairando no chão
Ilustração de Lisbeth Zwerger
Existem razões para o luto
Existe o abandonar da vida o corpo
Existe o sofrer sem dor
Existe o olhar vazio dizendo amor
Existe o homem descarnado
Escorrendo líquido pela vida
Existe o homem de tez altiva
Sustentando mentira e indecisão
Existe no meio do sim, a negação
Existe a certeza também
De se ter sempre dúvida pela frente
Existe no meio do rio correnteza
Dessas de levar e lavar a alma da gente
Existe este chão. Água de beber e banhar.
Existe sim,
Mas nunca fui tão ar.
tenho medo de não ser suficiente
e nadar eternamente
atrás dos cardumes
tenho medo do costume
de me perder na corrente
e achar que a vida
só se anda pra frente
frente
frente
quero andar pra trás
dar meia volta
seguir pelos cantos
ou distraída
simplesmente
quero não ter medo
quero vento
quero alento
quero dar voltas
ao redor do céu
e com os pés vagar
o firmamento
Imagem de Catrin Stein
Mormaço
Tem gente que me acha louca
Varrida, pá virada, cara a tapa, cara no chão
Mas tem gente que me tem tesão
Tem gente que me acha triste e manda ser feliz:
vai fazer exercício, dieta, viajar, virar a página e seguir adiante
Mas tem gente que me acha radiante
Tem gente que me acha chata
Estressada, irritada, irritante, cheia de problemas
Mas tem gente que até me faz poema
Tem gente que me acha exagerada
se irrita com meus ataques, xiliques, TPM e tiques
Tem gente que não se importa comigo
Mas tem gente que me faz abrigo
Tem gente que me faz rir, e eu não quero
Tem gente que me faz chorar e eu espero
Mas tem gente que é só ombro, colo, mãos e abraço
Tem gente que é floresta
Eu sou mormaço
Imagem de Benjamin Lacombe
te escrevi alguns poemas
e desenhei palavras no teu corpo
moço
desejei lê-las enquanto dormias
mas contive a vontade e apenas olhei
teu dorso
teu cheiro e ressonar suave
a pele branca prenhe
de desejo
nossa história inconclusa
a caminhar para um rumo
que não vejo
mas não vendo e mesmo assim
sentindo
acendo uma vela para o que almejo
duas mãos dois braços dados uma viagem
um só caminho e nós dois
seguindo
* imagem: quadro de Dali.
vestígios
Catei os vestígios da estrada
Retirei as migalhas do caminho
Sem deixar traço ou palavra
Arranquei todos os espinhos
Cuspi sobre a palavra malfadada
Rasguei a letra não dita
Ocultei o signo digitado
Da mensagem pretendida
Sobre ocultos dizeres
Nem o maior de todos
Os prazeres
Restou na despedida
oriente
e porque hoje estou assim
roendo a saudade pelas beiras
desfazendo o querer
do que o corpo anseia:
peles, mãos, braços
noite de lua cheia
o suor, a estrada sem fim
caminhos, ruas
tortuosa vontade de chegar o dia
e trazer o teu oriente
pra perto de mim
absurdo
absurdo é se conter
nessa subida sem fim
é contar migalhas e dar de um por um
amor tão bonito assim
mas nessa subida toda
o que eu quero é lá em cima ver
uma rede atada
esperando nossa chegada
- vem, meu bem, ficar junto de mim
bodas de palavra
Há que se ter números
Para contar
Três vezes sempre
O resultado é
O tempo de quem sente
Tem gente que
Conta algodão
Papel, linho
E as pedras do caminho
Tem gente que
Conta metal
Prata, diamante
Mas tem gente
Que é só amante
E conta
Palavras
araçá
agosto é a época do araçá
é a época da chuva
da praia escondida pelo rio
mas em julho
meu amor encontrou teu cio
e a nossa vontade
que vinha de tempos
se arrumou em um momento
e nem chuva nem vento
nem sol nem claridade
de novembro
qualquer banalidade
ou a provável saudade
que iriamos sentir
não ousou diminuir
a ternura o chamego
o amor o sossego
que o colo um do outro traz
daí então daremos conta
que não depende de tempo ou rota
aquela vontade sempre vai bater
na minha ou na tua porta
cheirando araçá
trazendo pro meu canto o norte
e levando norte
pra todos os cantos
de lá
espasmo
Ela experimentou
E gozou em bocas mais ácidas
Do que jamais conheceu
Mesmo com o rubro sobre a face
E sobre os lábios
Lividamente
Durante o espasmo
estremeceu
Não contou e nem pode conter
Outras bocas, mais torpes e
menos confusas
Sobre o que nem era seu
E gozou em bocas mais ácidas
Do que jamais conheceu
Mesmo com o rubro sobre a face
E sobre os lábios
Lividamente
Durante o espasmo
estremeceu
Não contou e nem pode conter
Outras bocas, mais torpes e
menos confusas
Sobre o que nem era seu
letargia
cada resposta cabe num vácuo
a ausência anseia falar
cada resposta é um presságio
do que se quer
ou se tem
para dar
cada resposta oblíqua
vaga a mente
dissipa e dissolve
etílica
cada resposta limpa
é suja
e não surge: some
tira sarro
do medo ou do escarro
fagulha
irmã da letargia e do descaso
ímã da covardia anônima
filha
da puta
cura
Com uma mão arregaço as saias
Com a outra
Puxo teus cabelos
Embriago meus dedos
Cheiro teus apelos
Com um olho te desnudo
Com o outro te descubro
E encubro meu desvelo
Com uma perna te enrosco
E vou chegando perto assim
Me encosto no teu canto
E canto parcas notas enfim
Com a voz embargada
Trago uma saudade
Arrastada
Do dia que você iria querer
Só a mim
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